Nos últimos anos, os símbolos do girassol e do quebra-cabeça colorido, reconhecidos como representações de pessoas no espectro autista e com deficiências invisíveis, se tornaram cada vez mais populares. De itens de identificação para símbolo de apoio e inclusão, passaram a ser facilmente encontrados em camelôs e lojas online.
Mas junto à repercussão, surge um novo desafio: a banalização da causa e o risco de transformar símbolos legítimos em modismos. A discussão ganha força nesta quarta-feira (18), data em que se celebra o Dia do Orgulho Autista.
Na Estação da Lapa, em Salvador, a reportagem teve acesso a um episódio que ilustra essa preocupação. Sem qualquer questionamento sobre a real necessidade de uso, um cordão de girassol foi oferecido livremente por um vendedor ambulante. “Só estou fazendo meu trabalho”, justificou ele, que preferiu não se identificar.
Atualmente, tramita no Senado um projeto de lei que busca regulamentar o uso de cordões identificadores para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras condições neurodivergentes, com o objetivo de fortalecer seu uso como instrumento de inclusão e acesso a direitos. No entanto, até o momento, o único dispositivo legal em vigor é a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). Ela garante, entre outros pontos, atendimento prioritário e acesso facilitado a serviços públicos e privados. O uso do cordão de girassol é facultativo.
Apesar disso, a banalização preocupa. Para o supervisor técnico do Centro de Referência Estadual para Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (CRE-TEA), Vinicius Neiva, o crescimento no uso indiscriminado dos cordões pode enfraquecer seu propósito original.
“O uso sem critério transmite a falsa ideia de que o cordão, por si só, garante direitos. Ele é um recurso de apoio à identificação, mas não representa, legalmente, um direito em si”, alerta.
A psicóloga Jéssica Castelo Branco complementa a análise, afirmando que o valor simbólico desses itens está diretamente relacionado ao respeito que recebem. “Símbolos como o cordão têm força quando são respeitados. Eles surgem como uma ferramenta de comunicação, sem precisar verbalizar", completa.
O exemplo de Jéssica chega a ser motivo de piada nas redes sociais, como o “Super autista”, com roupas estampadas com quebra-cabeças.
Jéssica defende que, mais do que regulamentar, é necessário criar orientações éticas e inclusivas para o uso dos cordões. “Não pode ser algo meramente burocrático”, diz.
“Esses símbolos carregam significados profundos, muitas vezes ligados a experiências de sofrimento psíquico e desafios diários que não são visíveis aos olhos.”
Na prática, o uso dos cordões pode garantir benefícios como gratuidade no transporte público, acesso a assentos exclusivos e prioridade em atendimentos. Por isso, o uso indevido também pode configurar fraude.
Comerciante de rua há 10 anos, Antônio Santos, de 47 anos, admite que vende cordões variados, inclusive o de girassol e o da fibromialgia, sem conhecer totalmente seus significados. “Nunca pergunto se a pessoa tem ou não a condição. Se ela veio até aqui, imagino que precise”, afirma.
Para Jéssica, exigir um diagnóstico formal pode ser uma proteção contra o uso indevido, mas há ressalvas:
“É preciso cuidado para que essa exigência não crie barreiras para quem está em processo de investigação ou sofre com o estigma. A chave está no equilíbrio: acolhimento, informação e fiscalização — não apenas fiscalização”, explica.
Vinicius Neiva acredita que uma forma eficaz de lidar com a banalização é investir em campanhas de conscientização sobre o uso correto dos símbolos e dos direitos garantidos às pessoas com TEA.
“A entrega conjunta da Ciptea e do cordão, feita por órgãos que já realizam esse tipo de emissão, pode ajudar a formalizar o processo. Mas o mais importante é a capacitação de profissionais das redes pública e privada para que compreendam e respeitem os direitos das pessoas autistas”, conclui.